23 setembro, 2005

"O fio da história"

A história tece a trama, inexoravelmente. Como um rio que não se desvia do seu leito. Dom Pedro I tinha, na alma, a sina da renúncia. Renunciou à coroa portuguesa (1826), por vontade própria, em favor da filha Maria da Glória; e renunciou de novo, agora à coroa brasileira (1831), por pressão do povo. Pedro II, seu filho e seu sangue, editou a Lei Áurea em 1888. E chegou a pensar que, com tão nobre gesto, teria enfim alcançado o respeito de sua gente. Triste engano. Um ano depois, voltaria a um Portugal que nunca seria seu.

Na República, a dança das renúncias continuou. O primeiro Presidente, Deodoro da Fonseca, renunciou ao cargo no mesmo ano em que foi eleito pelo Congresso (1891). Jânio Quadros reproduziu seu gesto; tomando posse, e renunciando, também no mesmo ano (1961). E Collor, eleito com a promessa de caçar corruptos (1990), tentou renunciar mas acabou cassado (1992). Como corrupto.

Em Severino Cavalcanti estão os mesmos traços de prestígio e perdição, tão presentes em nossa história. Subiu ligeiro e renunciou ligeiro. Melancolicamente. Sem sequer direito a palmas, no fim do discurso. Tivesse permanecido no baixo clero, onde era rei, e continuaria a vidinha boa que teve, todo esse tempo – servindo aos poderosos, empregando parentes e cabos eleitorais, sendo cortejado por vereadores e prefeitos do interior, feliz. Que volte em paz, a sua gente.

Seu pecado maior foi o de não estar à altura do cargo. Caiu porque sobretudo não compreendeu a grandeza do momento histórico. Elogiou Waldemar Costa Neto, quando clamávamos por sua prisão. E propôs penas brandas a deputados denunciados pela Comissão de Ética, quando queríamos - e continuamos querendo - o duro cumprimento da lei. Mensalinhos e mensalões foram apenas pretextos para uma queda anunciada.

É como se a história retomasse o seu curso imutável. Em alguns casos, com uma ponta de ironia. Decadente o projeto militar, por exemplo, tudo sugeria que o poder passasse a alguém de sua base civil; e, só em seguida, para a oposição. Assim se deu na Espanha - com Adolfo Soares antes, e Felipe González depois. Aqui, o normal seria uma transição que primeiro levasse ao poder alguém do sistema - Aureliano, Maciel, Sarney; e, apenas em um outro tempo, alguém da oposição – Tancredo ou, talvez até mais propriamente, Ulisses.

A eleição de Tancredo representou uma rutura nessa lógica histórica. Mas, como se uma invisível mão estivesse por traz da trama, não tomaria posse – como Rodrigues Alves (1919) ou Júlio Prestes (1930). Sendo a presidência exercida por José Sarney. Que, em honra da verdade se diga, esteve à altura de sua missão mais relevante - a transição democrática. Atuando, nessa tarefa, com paciência, bom senso e altivez. Severino foi Presidente da Câmara em um como que desvio da história. Não deveria ser ele. Nunca poderia ter sido ele. Só a mistura exótica da conspiração do PT contra o PT, mais uma improvável insurreição do baixo-clero, o viabilizaria. Aconteceu. E só se elegeu por ser um Severino igual a tantos dali. O problema é que, para permanecer nessa presidência, precisaria deixar de ser ele. Esquecer todo seu passado. Ter a ambição de construir um futuro novo e diferente. Não conseguiu. Provavelmente, nem quis tentar.

Tudo se deu, então, como se a história conspirasse para se redimir. Purgando erros de antes. E acabou por devolver, esses personagens, a seus verdadeiros papéis. Costa Netos, Rodrigues, Severinos, são nomes do passado. “Voltarei”, dizem todos. Mas não voltarão, realmente. Até poderão se eleger, nas próximas eleições. Que “dinheiro compra tudo, até amor sincero”, ensina Millor. Mas então seriam, em Brasília, como zumbis em um lugar a que já não pertencem.

Não devemos lamentar. Sobretudo porque, tudo sugere, outras cabeças coroadas também rolarão. De gente que se considerava acima do destino. Acima da lei. O trenzinho avança. Outros vagões estão vindo, por aí. Já se vê, no fim desse túnel escuro da democracia brasileira, bem longe ainda é verdade, os primeiros prenúncios da claridade.

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