03 novembro, 2005

“O SISTEMA COSTUMA ANALISAR OS EXCLUÍDOS PELAS CONSEQÜÊNCIAS DE SEUS COMPORTAMENTOS”


Desembargador Siro Darlan*

Há duas semana o articulista André Petry, da Revista Veja, fustiganos com seus artigos ácidos criticando a justiça e mencionando exemplos de julgamentos que no dia-a-dia do judiciário mostra como temos que reavaliar nossos posicionamentos na aplicação do direito aos casos concretos.

O Brasil é signatário de documentos jurídicos coma comunidade internacional onde se compromete a respeitar os direitos humanos de seus cidadãos. No entanto não haverá nuca respeito aos direitos humanos se continuarmos tratando os pobres como se eles não existissem em termos de cidadania. Os pobres, como bem analisa Luís Eduardo Soares no livra “Cabeça de Porco”, são invisíveis aos olhos de uma sociedade insensível aos seus apelos por respeito e dignidade e só se tornam visíveis quando incomodam, seja por sua presença contestativa nas ruas e logradouros públicos, seja quando praticam atos lícitos.

Quando se ignora o pobre como sujeito de direito, nega-se a ele o exercício desse direito e, conseqüentemente, deve-se reconhecer o seu direito de reação por essa agressão contra a dignidade que carece de reconhecimento por sua condição de pessoa humana. Teme-se que os excluídos possam incluir-se e, assim, mudem as regras. O sistema costuma analisar os excluídos pelas conseqüências de seus comportamentos e não pelas causas que os provocam, tendendo incriminá-los, ou pelo menos, responsabilizá-los por sua própria exclusão.

Assim é que quando há crianças nas ruas, não se pergunte as causas desse abandono dessa violência, mas busca-se criminalizá-los perante a opinião pública quando ocorreu recentemente na malfadada “Operação Turismo Legal”, e que apesar de representar uma violência contra a criança empobrecidas e abandonadas, ante a ausência de políticas públicas que as proteja do abandono e da negligência do poder público, acabou sendo legalizado por decisão judicial.

E são essas contradições e aberrações que marcam as decisões judiciais analisadas pelo articulista que coloca de um lado Rosemeire, uma mulher negra, de 33 anos que está presa desde de 20 de agosto de 2004, por haver tentado roubar (deve ter sido furtar) uma ducha elétrica de um supermercado, em São Paulo, se direito de apelar em liberdade; e o ex-deputado federal Roberto Jefferson, que segundo o jornalista botou a mão em R$ 4 milhões em dinheiro clandestino, saído do esgoto do PT, mas não perderá a liberdade.

Aponto outros exemplos como o de Sueli da Silva de 45 anos e negra, que está presa desde o dia 30 de junho, por haver furtado um queijo branco, dois pacotes de biscoitos e bisnagas de desodorante num supermercado em São Paulo, produtos que somados, custavam R$ 30,00. Jefferson poderia comprar 130 mil kits desses produtos, mas Jefferson não é Sueli para dormir no xadrez.

Finaliza o articulista, citando o caso de Rosana Evangelista de 36 anos, negra, cinco filhos, que ficou mais de uma semana no xilindró por haver tentado furtar dois pacotes de fraudas descartáveis ao preço de R$ 13,80. Porém, ironiza informando que ela conseguiu, num ato de generosidade da justiça, uma vitória incomum para negros e pobres: o direito de responder o processo em liberdade. Menciona ainda outros exemplos, mas cita também o caso de um promotor que no Estado da Bahia impetrou um hábeas corpus em favor da libertação de uma chipanzé de nome “suíça”, que mora há dez anos numa jaula do zoológico da capital baiana, certamente em condições muito melhores do que os seres humanos que estão presos na Polinter, e o magistrado pediu mais tempo para pensar.

Conclui o jornalista afirmando: “É perturbadora a impressão de que a justiça examina com mais rigor (e generosidade) uma medida que beneficia um chipanzé do que uma que beneficia um ser humano”.

É oportuno lembrar que o direito da criança teve início quando uma assistente social em Nova Iorque solicitou que mesma medida de proteção aos animais fosse aplicada pela justiça para proteger uma criança que estava sendo vítima de maus tratos no seio de sua família, surgindo assim o primeiro precedente na justiça norte americana de proteção à infância.

Como aqui ainda não se aplica o Estatuto da Criança e do Adolescente e muito menos a convenção das Nações Unidas sobre os direitos da Criança, e por ainda são consideradas legais ações de assepsia social através do aparelho policial é desejável que uma assistente social apareça para reivindicar que ao menos sejam aplicadas às crianças empobrecidas e abandonadas por falta de ação do poder público a proteção que dispensam aos animais do Rio Zôo.

Convém recordar que o município do rio de Janeiro dispõe de uma estrutura administrativa, muito atuante e competente, de proteção aos animais, mas não está aparelhada como uma Secretaria Especial de Proteção à Infância e à Juventude.

É muito incômodo para os magistrados sérios que se dedicaram à causa da justiça ler e reconhecer que o que diz o jornalista é verdade. Por isso, urge que haja uma reforma séria da estrutura de julgamento dessas causas de fundo social para que a lei seja aplicada com maior compromisso com a justiça e não com a insensibilidade dos que agem como programas de computador aplicando, às vezes com tecnicismo exagerado, mas de forma fria e distante às leis que devem ser interpretadas atendendo os fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, e no caso das crianças e adolescentes, a condição peculiar de pessoas em desenvolvimento.





* Siro Darlan é juiz da primeira vara da infância e adolescência do Estado do Rio de Janeiro.
* Artigo retirado do Jornal do Commércio.

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